Então compreendi que descendia de um clã de sujeitos que viam demais, sentiam mais ainda, e, como purgação para o que aqueles que lideravam o clã acreditavam ser dádiva, foi-nos dado a capacidade intrínseca de a cada lampejo de visualização, ter a pele marcada com fragmentos de pequenos cortes, mais ou menos do tamanho da circunferência dos olhos, obviamente invisíveis para os demais. Descobrimos mais tarde, ao longo dos rituais que marcavam os meses de fartura do clã, que nascer naquela condição era inevitável ou porque não dizer inalterável, como essas coisas que com o tempo vão se adensando...
Muitas vezes, quando decepcionada com descobertas que não poderia fazer, no sentido de manter à ordem do universo – como acreditar nas pessoas, conviver com humanos invejosos, não reagir a insultos viscerais – pedi aos céus para não ver tanto. Não adiantava, a visão por vezes embotada não redimia meus sentimentos diante do visível, evitando assim o vivível...o que de certa forma era prudente, coisas dessa alma que ingênua, ainda queria acreditar. Com o tempo, de tanto maldizer essa condição fui perdendo a visão, e hoje preciso de tempo para enxergar/intuir a possível dor que se anuncia...Por isso tenho pedido a Nanã que proteja aqueles que vêem para além do meramente observável, que não vivem na superfície das coisas, que dão a alma quando acreditam ser possível continuar vivendo apesar da vileza humana...
Anne Damásio
Fotografia: Francesca Woodman