quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Vó...


Quantos sonhos você teve desfeito? Quantas chances eclipsadas em nome de todos os outros de você, porque sempre foi assim viver, deixando-se morrer a cada dia e agarrando-se ao medo que da morte tinhas. Soube desde o momento em que te tive ao meu lado, quando numa adolescência conturbada – como tudo em mim – que você me amparava e fazia estranhas compressas com batatas, que você segurava minha cabeça insone, e me trazia água com açúcar, aquela mesma que eu precisei quando você se foi, que estarias sempre ali. E agora que não escuto sua voz, que não te vejo sorrir desinteressada, ou chorar quando nos despedíamos, me perco de mim por não te ter aqui.

Soube da tua compreensão desmedida, do eterno cuidado comigo, quando casei e separei meio que a tua revelia, não por descontentamento, mas por desconhecimento, porque você sempre adotava os que comigo andavam. E depois que cresci, que voltei, que um pouquinho de mim se foi com você, percebo a real dimensão que ocupaste em minha vida.

Soube de ti pela docilidade/desconhecida com que recebestes a notícia acerca da minha atual condição matrimonial, indecorosa para alguns, enervante para outros, desimportante para ti, na medida em que te via mover-se em função do que me fazia sorrir...E agora, para quem eu ligo quando alcanço essas pequenas vitórias que você tanto exaltava? Como te supor distante e inalcançável, como saudade sem volta?

Então lamento essa dor na alma, isso que nunca passa, e começo a entender de sofrimento, como estalo surdo, e te imagino distante, diáfana, e tenho medo de esquecer de ti. Me angustia a lembrança dos momentos finais, quando tentava te salvar daquela corporeidade corrosiva, e intuía a dor tão temida, e me agarrava ao que restava da tua vida...e te pedia silenciosa e alucinadamente para nunca ir embora daqui, de mim.

Anne Damásio

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Estagnando...


Era assim que se sentia, um entorpecimento sem causa tomando vulto, um desdém de viver, a velha impotência tomando ares de insolência diante das óbvias vilezas que lhe cercava...o cansaço invadia cada poro, justificado pela necessidade de viver, pelo deslocamento, pelas beiras do abismo desenhadas de um lado e do outro...e essa sede abismal tomando forma, como se o cenário diante dela pedisse o pulo. Sentia-se incongruente, como um ângulo geométrico sem conseqüência, o que redundava matematicamente no improvável. Andara pensando, como diria aquele que lhe traduzia, sobre as vidas dentro, fora e além de si, vidas bem traçadas, onde só o viver milimetricamente traçado importava, e até tentava, mas sempre fora assim desencontrada, inexata, oscilando entre o querer e não querer, sem coragem para agir diante da velha inadequação de viver. Sensação amparada numa inquietude quase sísmica, como fragmentos corpóreos amontoados antes da queda, ruindo velhos projetos de construir ideais insanamente utópicos, doidos sonhos...e cismava tanto, teimando nesse caos que lhe constituía, se deixando viver, e como cansava...

imagem retirada da internet...

quarta-feira, 18 de agosto de 2010


Hoje me descobri meio lunar, madrugada densa, solidão, excessos e a eterna negação de enquadramento. Coerentemente me equilibro a beira desses abismos que circundo eternamente – e me vejo cada vez mais abismal, ou quem saberá se abissal - E pensei, sim pensei, que se para ser aceita tenho que estar terrível e exteriormente bem, então efetivamente nunca fui aceita...estou um tanto anti-social, numa perspectiva meio ermitã, entre livros e dores obscenas. E jurei entre dentes que viverei bem assim, guardando palavras livres que emanarão do pensamento e saíram como feixes sem pudores..A mim, basta olhar, e para isso meus mestres foram, a solidão e as madrugadas, sobretudo aquelas que passei debruçada sobre livros, madrugadas boas para viver dentro delas quando as coisas não ameaçavam perecer... Desse tempo me sobrou essa mania de morrer de dia e, a noite, me abrigo dos olhares covardes que me procuram quando a dor invade suas entranhas, a mim cobram a crueza, a razão, o estar bem...Mas nesse mês de maus augúrios, em que me transformo em mônada, essas pessoas que grudavam os olhos em mim a procura de respostas somem convenientemente. Não sei o motivo. Não quero saber. Porque jurei antes do sono sem sonhos, me libertar da indecente necessidade do outro. E se resolvesse procurar culpados para as minhas dores, meu dedo em riste se voltaria contra mim, por esperar dos sujeitos que me cercam efêmera e temporariamente, sempre em busca do que sequer sei se posso oferecer, atitudes que eu, por odiar firmemente ingratidões e ausência de reconhecimento teria. Para sanar esses sumiços convenientes, essa ingratidão que respinga nas pequenas coisas em que ainda acreditava, não me pouparei dos excessos. Porque nunca temi viver, porque pertenço a essa horda atabalhoada de seres que sabem ser, pertenço a meus desesperos, meus dramas, porque tudo em mim dói demais!

permanência?


Descobri em mim uma veia assassina, que direta ou indiretamente mata tudo o que é sutil ou inteiramente tentativa de permanência , pela incapacidade por vezes vã de não permitir que me sigam, me adorem, me odeiem por conveniência. A gente passa a vida procurando o sentido das coisas e ao fim de tudo nos deparamos com pessoas que mais cedo ou mais tarde inventarão qualquer subterfúgio para se salvar das tais conveniências. Ao acordar do torpor da noite anterior consegui esboçar entre-dentes um sorriso – mais parecido com espasmo – E só agora consigo exteriorizar esse ressentimento, esse fastio de viver. Talvez a maturidade esteja me convertendo numa mulher de 35 anos, tatuada, e deslocada...no corpo e gestos denúncias dos meus excessos, na alma, mais dúvidas do que costumava ter quando menina. Então os flertes constantes com o abismo, que me permito como forma de sanar a busca por mim... E vou sussurrando entre lábios: não tenho culpa desse sentir excessivo, desta dor que vaza pelos meus poros, não tenho culpa dos meus delírios ideacionais... É deles que vivo. Estou exagerando, eu sei, mas estou em carne viva, escrevendo nietzchianamente com sangue pra diluir minhas insanidades, que de temporárias nada mais tem...Anne Damásio

Desenho:audrey kawasaki

domingo, 25 de julho de 2010

Por trás do meramente observável...


Eu sei de mim, do que me dói – vileza me dói, falta de respeito me dói, fazer de conta que não vejo o que é óbvio me dói mais ainda – talvez por isso não consigo evitar meus métodos loucos de me anestesiar por dentro. Tá faltando as cápsulas do esquecimento. Então arrisco uma dose de Caio F., e caio no choro. O que eu sou, o tanto que vejo das pessoas não tem mais cura!

Anne Damásio

terça-feira, 20 de julho de 2010

Mirar, desviar...


Então compreendi que descendia de um clã de sujeitos que viam demais, sentiam mais ainda, e, como purgação para o que aqueles que lideravam o clã acreditavam ser dádiva, foi-nos dado a capacidade intrínseca de a cada lampejo de visualização, ter a pele marcada com fragmentos de pequenos cortes, mais ou menos do tamanho da circunferência dos olhos, obviamente invisíveis para os demais. Descobrimos mais tarde, ao longo dos rituais que marcavam os meses de fartura do clã, que nascer naquela condição era inevitável ou porque não dizer inalterável, como essas coisas que com o tempo vão se adensando...

Muitas vezes, quando decepcionada com descobertas que não poderia fazer, no sentido de manter à ordem do universo – como acreditar nas pessoas, conviver com humanos invejosos, não reagir a insultos viscerais – pedi aos céus para não ver tanto. Não adiantava, a visão por vezes embotada não redimia meus sentimentos diante do visível, evitando assim o vivível...o que de certa forma era prudente, coisas dessa alma que ingênua, ainda queria acreditar. Com o tempo, de tanto maldizer essa condição fui perdendo a visão, e hoje preciso de tempo para enxergar/intuir a possível dor que se anuncia...Por isso tenho pedido a Nanã que proteja aqueles que vêem para além do meramente observável, que não vivem na superfície das coisas, que dão a alma quando acreditam ser possível continuar vivendo apesar da vileza humana...

Anne Damásio

Fotografia: Francesca Woodman

domingo, 18 de julho de 2010

escorregadia...


Sabe daquele tempo em que teimosamente queríamos viver situações ideacionais, como se tudo que se configurava não fosse suficiente para expressar esse encontro de almas? Ele passou...e você se foi escorregando de mim, nessa brincadeira de fazer beicinho e tomar chá de sumiço – sempre deixando esse rastro de inviolabilidade, de desejo incontido porque não saciado.

E então, depois de tanta convivência/conivência, você resolve passear por aqui, brincando de quando em vez de permanecer...me assusto com esse novo jeito de corpo, com esses encontros fundados no desejo que habita aqui dentro, aquele de antes lembra? E quando você se vai, a gente fica com fome dele de novo. E te vejo entrando no espaço que nos gestou lentamente, “causando moça?” meio que deslizando nesse arco-íris que lhe serve de tapete...um menino linda!!!! Mas naquele espaço de corpos castrados tenho que conter o desejo, e ele permanece dormindo aqui dentro, porque aqui dentro eu sei que ele não vai embora nunca. Não machuca, só cintila...é brilho, como diria você, purpurinado...como diria eu lacinante, escorregadio, luz que fica!!!Então brinca mais vezes de me deixar te olhar, brinca de ficar de vez em quando, prometo te fazer sopinhas e escorregar naquela curvinha onde deposito gotas de limão...Prometo te amar desse jeito torto...

Anne Damásio